9 de março de 2011

Hades procura por Perséfone, quando lhe falta carícia no meio da noite

Todos os dados apontam que, em rumo a Calecute, a armada de Pedro Álvares Cabral sai de Lisboa, e acidentalmente descobre o Brasil, no dia de hoje.
Portugal declara oficialmente guerra à Alemanha e seus aliados, no mesmo ano morre Grigori Rasputin. 
Nasce Américo Vespúcio, nasce Iuri Gagarin.


Às 4h da manhã se ouve em uma antiga rua, o suave tocar de um violino. Essa melancólica melodia invade o silêncio, parecendo que traduz mágoas e incertezas. Tão tarde, a música desliza calmamente por entre as poucas e velhas residências. São 4h da manhã, e o desabafo musical não parece ter fim. 
Ainda se faz escuridão quebrada pela luz de um poste no local, tal luz também ilumina a fonte de criação da melodia. 
Em um canto não tão escondido de um quarto, há um homem. Seus olhos transmitem um olhar distante, fora de tudo que já foi um dia conhecido. Ele parece sonhar acordado, sonhar com memórias atingidas por algo que reluta em relembrar. De olhos marcados pelo tempo, não deixavam de ser belos, os cabelos castanhos de certa forma claros que caem pelo rosto, há muito tempo não sabiam o que era tesoura, barba por fazer e banho à tomar. Com tudo, aquela criatura encantava aos olhos com seu mistério.
Normalmente, o som do violino dançava pelas casas em dias de chuva, fazendo com que os vizinhos, com o barulho da água, não ouvissem o que o criador chamava de tormento, mas de uns anos até aqui, a 
'' tormenta ''  se tornou mais freqüente e longa.
Amanhecer a anoitecer, quase não se via a presença dele entre a pensão onde morava, um lugar estranho aos olhos de muitos. Às cinco da manhã cessou aquela admirável composição, mas se entrasse no quarto do rapaz, iria ver que o devaneio entre mundos ocultos por dentro de si, ainda continuava. A luz do poste, que antes clareava o quarto, se fez total breu, a rua, já não escura o suficiente, finalmente contentava-se com a quietude. Tudo parecida mórbido.
Debruçado na cama, ele escrevia textos que se referiam ao cotidiano, uma espécie de diário. Mais que isso. Doces palavras e tantas histórias, era uma fuga alternativa em meio de um quarto que cheirava à mofo.
Cassidy, seu nome era Cassidy, escritor e músico. Havia mais de três anos que morava ali. O lirismo se mantia intacto em Cassidy, idade mediana, por volta dos 30 mais ou menos. Algo acontecia internamente, talvez uma luta passional, que deixava sua essência mais pesada do que já era escancarada. 
Bateram 6h da manhã, e ele sonhava. Padres vestidos de vermelho, faziam fila para devorá-lo, com seus sorrisos amarelos e bocas roxas, a cruz reluzente em seus peitos, e seus paus eretos cobertos pela batina. Um deles tomou a frente e o levou para um quarto escuro, esse se parecia com Verlaine. Acordou no susto, ligeiramente foi até a geladeira da pensão, pegar um pouco de água. 
Descendo as escadas que rangiam, ele foi lentamente até a cozinha. Coçou os olhos, a barba, e acendeu a luz.
- Ai meu ... Caralho!
- Isso são modos, criança ?- Perguntou a dona da pensão, que estava sentada à mesa.
- Perdão, não quis ofender, só me assustei, pensei que não tinha ninguém esse horário.
- E não tem.
- Não ? E o que por acaso a senhora é... ?
- Ninguém, meu rapaz.
Ali em sua frente, a senhora virou pó. Cassidy acordou em sua cama, era mais um sonho. Decidiu beber água, e desceu as escadas, que não rangiam, apenas o último degrau. Antes de entrar na cozinha, perguntou se havia alguém ali, não houve resposta. Ele foi rapidamente abrir a geladeira. 
- Engraçado como não bate a luz do dia pela janela - Falou.
Colocou a água no copo, a virou para voltar ao quarto.
- Você quer procurar minha Perséfone ? - Perguntou um sério homem.
- Claro, porque não ? - Sorriu Cassidy.
- Pensei que iria resistir e levar um susto, como todos os outros mortais. Geralmente todos ficam empolgados ao verem Afrodite ou Dionísio, não eu.
- Você é um sonho, Hades.
- Não sou, Cassidy, eu matei você, isso não é sonho.
- Eu estou vivo.
- Você está vivo, perdão, mortal idiota.
- Quer conversar ? 
- Que horas são ? Tenho que achar Perséfone.
- Acho que não batem horas exatas, vamos conversar.
- Er...
-Sente-se.
Como num gesto quase que manipulado, Hades sentou. Ficou olhando para a cara de Cassidy.
- Bem - falou Cassidy - estou excitado com sua presença, o que lhe traz para perto de mim ?
- Creio que a sua ausência, o que houve ?
- Me perdi, Hades, decidi não mais voltar.
- Sabe muito bem que você não se perdeu... Apenas, não existiu para nossa realidade.
- Sei, na verdade, foi o que quis dizer. Apenas me diga, o que lhe traz aqui ?
- Perséfone, já disse, ela está um mês atrasada, sinto a falta de se corpo e sua alma, tocar sua pele macia, que me dá vida.
- Boa piada.
- Sim, eu sei.
- E porque até mim ?
- Queria saber como está, quer dizer, sinto sua falta.
- Eu nunca estive.
- Exatamente.
Faz-se silêncio na mesa, a hora é paralisada, não pode correr, Hades evita olhar nos olhos de Cassidy, que abre uma garrafa de cerveja.
- Acho que ela já voltará, digo, ela ama a sua entidade, não o deixará.
- O desejo faz com que cada tempo sem ela seja perturbador.
- Sei como é.
- Desculpe por isso, não foi nossa intenção matá-la, não diretamente, mas você estava envolvido e isso não estava certo.
- Como ela está ? Digo, Pamela ainda lembra de mim ?
- Não, ela é morta.
- Sei.Você pode ir, se quiser, não é obrigado a conversar comigo.
- Perséfone foi tomada pela dor, pelo seu destino não ser ao nosso lado, por você
 ser apenas uma peça pregada por Morfeu, que por vingança dela não ter se cedido a ele, o fez. Você é forjado, e foi dado à Orfeu por isso, uma ilusão, não podia ficar conosco. Pensamos que seria uma forma de te fazer viver.
- Entendo. Espero que encontre Perséfone.
- Feliz Aniversário, Cassidy.
- Perdi a conta dos anos. Mande um olá para Perséfone, diga que breve nos encontraremos.
- Não será tão breve.
- Tempos dependem do ponto de vista.
- Realmente, foi um prazer.
- Hades!
- Sim ?
- Sonhos podem sonhar ? 
- É diferente, rapaz, você é condenado a isso, à deus.
- Até logo.
Esfregando os olhos, Cassidy volta para seu quarto. Já é claro, então ele fecha as cortinas, para dormir melhor. Ao fechar os olhos, lembra de todos os dias 9 de março que já passou, sorri, e lembra que essa também foi o dia que conheceu Pamela. 
- Maldito Morfeu.
Ele sonha que está sendo afogado no mar índico. 

5 de março de 2011

Lost in translation

E depois de ter voltado para casa, pois passara algum tempo no hospital, ela preferia ter a companhia da sensibilidade, do que de Dostoiévski.

2 de março de 2011

Sublime canção

Não era muito tarde quando cheguei em casa. Me sentia diferente, na verdade, me senti diferente o dia todo, desde a hora em que acordei e me senti viva e parte de uma experiência sem passado que a memória deixe alcançar. 
...
É difícil ver nas suas razões, concordância com novas outras razões. É o primeiro impacto diante de Krishna e Arjuna.  
...
Amarrei meu cabelo de uma forma diferente, troquei a calça jeans que tanto me enjoa, e fui a quintal sujo ver o céu. Entendi porque o papagaio sobe no telhado e fica imóvel pegando o vento que sopra invadindo suas penas verdes. Olhei para os coqueiros altos, as folhas que se mexiam, o céu azul-cinzento, e me senti ainda mais sensível. 
Lembrei que aquela hora era a hora em que minha avó sempre faz o café, que meu tio tanto gosta, e eu também. Mas ao sacudir a garrafa térmica, não tinha nada. Me conformei que não tomaria meu café diário, mas minha avó se levantou e foi fazer, sem eu pedir, outra vez o líquido puro e negro que havia acabado. Conversei com ela na cozinha, falei de coisas normais. A coisa que mais me encanta, apesar de humana demais muita das vezes, é a inocência com que minha avó vê certas coisas. Não sei se inocência é a definição certa. Não sei definir nada nesse momento.
Peguei a maior xícara que enxerguei, coloquei meu café quente dentro e voltei ao quintal. Precisava de céu.
Lembrei do livro que lia, fui ao quarto, peguei e voltei, só que começava a ficar escuro, o infinito ficava belo, até a luz acabar. Liguei a lâmpada, sentei na cadeira e li. 
Não era frio, nem quente, só era a sensação de dentro que se manifestava. Me agoniava, mas não desconcentrava. 
Não me sentia completa, nem sei porque me sentiria, já que nunca me sinto. Me senti carente de coisas que nem sei se existem, senti vontade de atravessar portas, e ao mesmo tempo, me congelar, me fazer parar de pensar e sentir, mas também senti vontade de agir. Não me sentia real, apenas uma imagem que tornava a repetir ou era inédita em algum lugar, em outras portas e janelas. 
Uma barata enorme começava a se aproximar de mim, não mato baratas, peço mentalmente que elas sumam, até que começo a gritar e meu pai de saco cheio as acerta. Dessa vez meu pai não estava, ele habitava algum outro que necessitava estar, longe de mim, que necessitava estar ali. Peguei a sandália e matei aquele enorme pequeno ser. Enquanto cometia esse assassinato de outras leis, o papagaio me olhava de canto, comendo seu pão. Aquilo me incomodou, e lhe dei uma explicação, começando um bate papo e entendendo que estava sendo compreendida. Parei e disse para mim mesma '' ele é só uma ave '' e voltei a ler. 
De repente me senti exposta e sozinha demais, fechei o livro que me exigia atenção e voltei para meu quarto. 
Ainda me sinto diferente, diferente demais para ver pessoas. 

6 de fevereiro de 2011

Baratas zumbis não sobreviveriam a bombas atômicas

Escrito para Alexandre Felipe, que me ajudou com o título. 

Permanecíamos quietos em seu apartamento, um amigo e eu.
Ele olhava o teto, e eu, o resto de café que sobrava no fim da xícara branca na qual há algumas horas ele tinha me servido, o zumbido do silêncio incomodava, enquanto a tarde botava fim no dia, e era substituída calmamente pela noite.
- Posso colocar Beatles ? - eu perguntei.
- Não, não gosto de Beatles.
- E que tal um blues da Janis ?
- Dela eu gosto, pode ser.
A primeira faixa era Mover over. Ele estava jogado no sofá manchado, sendo aliciado pela sua Memphis vermelha que permanecia imóvel em cima o corpo dele, mas ambos sabíamos que era puro teatro, ela queria mesmo o corpo dele.
- Já tá anoitecendo, porque não liga a luz ? - Perguntei, até como uma forma de puxar assunto.
- Não paguei a conta, não tem luz.
- Tem vela ?
- Sei lá.
Andei pelo apartamento, procurando uma vela, porque a escuridão já se tornava enjoativa. Acabei me entretendo com umas formigas que faziam caminho do armário até o fogão dele. Achei a vela.
- Ei, porque tem uma vela preta em cima da tua geladeira ?
- Ah, me deram ali na encruzilhada, usa aí.
- Tá.
Acendi a vela, e ela soltava um cheiro bom. Me joguei no chão e fiquei igualmente olhando para o teto, querendo ver o que tinha de interessante nisso.
- Ei - ele disse - baratas zumbis sobrevivem a bombas atômicas ?
Levantei do chão e andei de um lado ao outro. Respondi:
- É uma boa questão, muito boa. De onde saiu ?
- Uma barata me perguntou.
- Sério, quando ?
- Teve uma noite que me chamaram pra tocar num barzinho, com as paredes sujas e que parecia uma estufa de tanta fumaça. Quando terminei de tocar, sentei no balcão pra não sair com sede.
- E ?
- E uma barata chegou andando com um cigarrinho na mão.
- E o que ela disse ?!
- Olha, foi mais ou menos assim:
'' - Robert Johnson até que teria orgulho desse bluesinho que tu tocou, até que. ''
- E ? - perguntei.
- Daí eu perguntei o que ela fazia ali.
 '' - Vim ver se algum verme feito você tem alguma coisa a acrescentar na minha vida. ''
- Olhei pra ela com desprezo, claro, um tipinho desprezível de barata.
- Sei, mas afinal, o que ela pretendia ?
- Olha, depois de ajeitar o chapéu panamá, que dava um charme, ela me deu uma piscadela.
'' - Veja, garoto, não quero parecer uma barata de esgoto, puramente mal educada. Veja pelo meu lado, há muito não encontro inspiração pra nada. Sou essencialmente blues, e bem, garotos como você me fazem lembrar do tempo em que música valia de algo. Não se ache por isso, seu lixo. ''
A chama da vela preta fazia uma espécie de dança do ventre, o que me fez desviar a atenção por alguns instantes.
- Mas enfim - me voltei - ela continuou ?
- Continuou. Falou sobre música e baratas francesas que cheiram a talco.
- E onde entram os zumbis ?
- Ah, sim. Ela me disse '' O espírito jovem de hoje vale a mesma coisa que merda, bosta, cocô. Outro dia vi baratas jovens fantasiadas de vampiras e zumbis e pensei ' idiotas, não vêem que baratas zumbis nunca sobreviveriam a uma bomba nuclear ?! Apelam tanto ao diferente e se tornam patéticas. ''
- PUTA MERDA! - comecei a rir e meu amigo também, baratas tem um ótimo senso, havia me esquecido- E depois ?
- Ela disse que ia para casa dela, pois se sentia cansada, e foi. Disse algo sobre fazer amor consigo mesmo, pensando na Billie Holiday, uma coisa de mal gosto diga-se de passagem. Mas até que sincera.
- Deve ter ido fazer blues.
- Tomara.
- Queria ser a Billie Holiday.
- Pra barata se usar pensando em ti ?!
- Não, porque ela é boa. Não a barata, a Billie.
- É.
- É.

28 de janeiro de 2011

Ele odiava cobras e detestava voar

Minha mente funciona com o trabalho escravo de ratos, que manipulam manivelas geradoras de energia, com suas patinhas sujas de suor. São preciso muitos ratos, pelo fato de minha mente ser grande e oca, o que dobra o horário de expediente, exigindo mais de tais animais tão esforçados, em troca os ofereço comida, que é cada idéia inútil e vagabunda que eles mesmos produzem.

Certa tarde chuvosa, iniciei conversa com um deles. Dizia-me ele que seu maior sonho era voar, mas como isso era impossível, apelava para seu segundo maior sonho, que era ver um show do Lynyrd Skynyrd em uma taberna com endereço localizado pelas ruas do inferno.
Eu disse:
- well, caro amigo, de fato seu segundo sonho me parece bem mais viável do que um simples impossível vôo.
Seus olhos enxeram de brilho, por ter a mínima chance de poder ver de perto os colhões de Ronnie Van Zant apertados no jeans.
Como nem todos os membros do Skynyrd estão mortos, ainda teria de esperar algum tempo para realizar tal sonho. Além de ter a certeza de que o endereço realmente seria pelas ruas super lotadas do inferno. Porque não num plano acima ?
Seria um questionamento de Ronnie ?
Algo ascendeu em mim depois que levei tal prosa com meu amigo roedor, que logo após o término de nossa conversa, subiu do meu nariz até meu cérebro, levando por último sua calda, que havia ficado pendurada em um dos buracos nasais por alguns segundos.

Ronnie foi uma das melhores pessoas que não conheci, possuía uma voz adocicadamente rude, ou talvez não seja essa a definição certa, e sim, rudemente adocicada. Ou talvez nem assim. Ele não me disse que gostaria de morrer com suas botas e que não viveria até os 30, mas de alguma forma, todos ficaram sabendo.
Certo dia, um outro rato que habita em minha cabeça cantarolava uma das mais famosas músicas

  '' Cause I'm as free as a bird now,
               And this bird you can not change 
       Lord knows, I can't change. '' 

E mesmo não sabendo se essa parte é '' propriedade '' de Allen Collin ou Ronnie, ou de ambos, a complexidade do contexto todo faz com que só sobre '' adocicadamente ''.
Creio que o outro rato, o que cantarolava, chama-se Alan.

Com tudo, só tinha vontade de abraçar Ronnie, chegar perto de seu rosto de quem não encontra barbeiro, olhar em seus olhos vivos e beijar sua testa, com o carinho meu e de meu rato sonhador.
O terceiro sonho do rato, era quem sabe, ser Simple Man .

2 de janeiro de 2011

Póstumo

Comecei a escrever isso em sala de aula, provavelmente numa aula de Matemática. Não botei fé, e ainda não boto, no conteúdo desse texto, mas terminei porque prometi a mim mesma, e por detestar coisas inacabadas quando parecem ter um final.
Também escrevi para Amanda Gabriella.
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- Com a benção de deus e a permissão do diabo.

E fazia quatro e meia da manhã, no horizonte nascente, raiava lá de longe um caminhão. A poeira do caminho, que corria pelo ar, o que ela queria ? Ela queria arrancar. Naquele dia ia embora, em um errante caminho um velho de vida pronta.
Com sua capa de pano, pés sujos e sonhos inacabados, entrou no veículo lotado de semelhantes e segui sua sina.
Conformidade nunca foi seu forte, em busca de algo novo e uma diferente odisséia ele almejava ir atrás. Queria ver algo que jamais havia visto, além.
No caminho poento, o velho olhava sem arrependimento para trás. Figuras se formavam ao logo da estrada, e sendo verdadeiras ou não, imagens sempre revelam algo. Adeus, senhor xamã.
E com o sol de meio dia ele teve de se acostumar, pois sem pena, ele batia sem parar. Já ébrio com o cheiro do cachimbo de uma senhora que fumava no canto do caminhão, adormeceu, e disso sim ele se arrependeu.
- E porque abandona teus filhos, ingrato sem vergonha ?!
      Gritava a voz de um sonho que não me pertence. Houve resposta.
- E quem fala com vontade, de algo sem gravidade ? Nasci e me criei nessa terra e filho dela também sou, um pai cria o filho para fora, que egoísta o contrário faz. Tecelão de seus caminhos eu não posso ser, então porque permanecer e me deixar perecer ?
       A voz calou-se. O velho acordou.
Descendo finalmente do caminhão, o relógio marcava 15h.
Um encanto de cidade, essa nunca viu, e tão maravilhado, o velho quase não ouviu:
  - A cidade consumidora de fogo e enganadora de corações, ela vai sugar, ela vai te pegar e te devorar.
        Gritou um homem de chapéu na mão.
Sem dar ouvidos, o velho adentrou seu possível erro. Andou durante horas, em um bairro chinês, onde ficou até as 6. A cidade multicolorida o engoliu, e por muitas etnias ele passou.
Uma em particular chamou sua atenção, uma bela moça com uma vela na mão. De venda furada tapando um dos olhos, para o velho com o outro olho fitou.
  - A chama da tua vida. Eu posso apagar ? Ela queima levemente até acabar, ela sabe exatamente onde pára o teu andar.
A moça que proferiu, sumiu. E de grande espanto o velho ficou quando começou a ver sentido algum ali. Mas nem bem respirou e já avistou três bêbados vindo ao longe, quase feitos de luz azul.
- Quem vem ?!
  Perguntou o velho
-  Ninguém
  Respondeu uma das vozes
- Ninguém ?
  Perguntou de novo
- Talvez
  Respondeu uma outra voz, e continuou
- Sou o nada, sou ninguém, eu sou nós.
E o velho já não soube o que pensar, três bêbados que ali andavam, sumiram como uma fina espuma soprada. Há muito já estava escuro, mas disso todos já sabem, e o velho, o que procurava ?
      
     - Seeeeeenhoras e meninossss!
Berrou uma voz masculina
     - Com permissão de deus e a benção do diabo... Eu lhessss ... apresento ...
                       Nada mais nada menos que
           Morte.
Sob a luz de um poste apareceu a senhora portadora de um olho só e do fio da vida amarrado no pescoço. E de toda a platéia que ali não estava, olhou e foi até o velho.
Ela, de cabelos vermelho-brasa e psicodélica roupa, respirou o ar frio que pairava perto do velho.
          - E de fato, um rato.
                      Quem pode ser ?
- Meu nome é ..
- Não, seu nome não.
A vida é assim, claro. Você nasce e desde aí começa a perder.
Você cresce, continua perdendo.
Daí morre! E aí começa a ganhar. Sentindo cheiro de incenso, meu caro, você vê o frágil e pequenininho mundo, cada mente tola, de pessoas que conhece e ignora. Você entende que isso tudo é uma prisão, a prisão que tem que ficar até poder realmente viver, que é morrer.
  A cartada da roda da fortuna. Conhece ?
  A cartada da morte.
O velho ficou só novamente. De mente confusa, já não sabia o que fazer, esqueceu o que procurava, sem saber que isso já encontrara. Se largou em um chão qualquer e lá ficou, olhando e ouvindo um ecoando...
  '' Você trocou sua liberdade ''
Ouviu um tambor, pequenas patinhas marchando. Levantou-se, suspirou e concentrou-se.
Aranhas de farda vermelha tocando concretos tambores e cornetas.
- Ai, filha d'uma patifa - exclamou o velho, pois uma pequena caranguejeira que corria longe o havia mordido no pé.
O pé inchou, e na dor ele se confundiu, porque seu ouvido estava estourado com o som de contrabaixo iniciado por uma passeata de hare krishnas, que rodaram em sua volta, o giraram fazendo flutuar. Cada vez mais alto e mais alto.
Estourou. Ganhou.
 

A dona da casa atendeu o telefone, e um conhecido a pegou por trás

Ela é só uma casca, dura e oca por dentro, daquelas pessoas que julgamos ter pena quando vemos andando pelas ruas. Uma daquelas pessoas que se afundam na merda líquida, e não sabem nadar.
É essa a sua impressão ao vê-la. Mas impressões nunca vão passar de impressões.
Ela tinha raiva das pessoas, pequenos parasitas que se chamam de pessoas. Achava uma perda de tempo sem tamanho, uma burrice, você viver.
Ela queria sua morte. Não a dela, a sua.
Acordava todos os dias de manhã cedo, tomava uma xícara de café com leite atolado em açúcar, e saía para trabalhar. Ao contrário do café, era amarga com as pessoas, porque o recíproco era verdadeiro e antecessor.
Trabalhava como caixa de supermercado, e todos os dias algum cliente discretamente a chamava de puta, costume. Uma noite, ao chegar em casa, abriu a porta, adentrou o ninho a que chamava de apartamento. Largou as chaves em cima da mesa central da sala e foi tomar banho. A campainha tocou. Ela rezou para que não fosse Fernando, seu vizinho para quem ainda fazia esforço em demonstrar carinho. Desligou o chuveiro, enrolou-se numa toalha, e caminhou até a porta, mas ao abrir, nada. Achou estranho mas acabou por voltar ao banheiro.
O telefone tocou. Novamente cobriu-se com a toalha já molhada e foi atender. Nada. Voltou ao banheiro decidida a não mais sair até que o banho tivesse acabado. Lavou o cabelo e ensaboou o corpo, parte por parte. Possuía um corpo pálido, com sinais pretos, que lembravam chocolate branco com cookie. Enxugou-se e foi ao quarto vestir algo. A campainha tocou. Pensou em não atender, pois além de ter tido um dia cansativo ( como de fato eram todos ), não gostaria de mais uma vez encontrar o vazio em sua frente. Mas acabou por colocar um pé na frente e outro atrás, um pé na frente e outro atrás, um pé ... Abriu.
- Porque demorou tanto a me atender ? Perguntou Fernando, que sorria demasiadamente.
- Ah, é que... hm ... Por nada.
- Certo, veja o que trouxe, Val.
- Pra que frutas e uma garrafa térmica com ... chá gelado ?
- Porque eu tenho que comemorar algo com você, comemorar com alguma coisa que não seja essas porcarias que você come, não posso entrar ?
- Pode sim, senta ali no sofá, já vou indo junto.
Ela olhou para fora, saiu um pouco para verificar se não havia algo que mostrasse quem tocou a campainha antes. Olhou para Fernando, arrumando as coisas na mesa da sala, sorrio. Entrou e fechou a porta.
- Fernando, você tocou a campainha antes ?
- Não, Val, porque ?
- Por nada. E telefonou ?
- Também não. Pode pegar copos na cozinha ?
- Vá você.


...


- Valentina!
- O que é, Fernando ? Já disse pra não me chamar assim!
- Posso usar as taças ?
Valentina olha com um olhar de desdém que deixa Fernando constrangido, mas de qualquer forma, vem andando com as taças na mão.
- É um lindo nome, Valentina, porque não ? Valentiiiina, Valeeeentina, Valentinaaaaa.
- Quer parar ? Alias, pra quê taças ?
- Eu não disse que estamos comemorando ?
- Ah, sim, mas o quê exatamente ?
- Um emprego que aceitei. Para tocar piano naquele barzinho que fica na esquina.
- Que ótimo!
Eles comem as frutas e o chá gelado, que Valentina detestou, assistem televisão.
- Posso dormir aqui hoje ?
- Acho que pode.
- Nós nunca... hm ...
- Eu sei, e vai continuar assim.
Fernando levanta do chão, onde acabaram sentando, anda pelo apartamento, liga e desliga a luz da varanda, olha os livros, e pensa em qualquer motivo para que Valentina tenha se tornado uma pessoa tão fechada, não que a tivesse conhecido diferente. Na verdade, pensava que não a conhecia, o que não deixava de ser mentira. Certa noite, quando acabava de chegar em casa, avistou Val abrindo a porta, perguntou se poderia conversar um pouco, e desde aí, conversava sempre. Mas ela não falava sobre si, ou sobre qualquer coisa que se relacionasse ao mundo adentro. Mas seu corpo de mulher grega, chamou a atenção de Fernando, e os cabelos que caíam pela cintura, eram como se fossem chicotes, que com chicoteadas, faziam uma parte inferior do corpo dele, latejar. Via açúcar, aonde ninguém acreditava em pudim.
- Posso tomar banho ? 
- Se trouxe toalha ...
- Não.
- Use a minha.
Enquanto Fernando tomava banho, Valentina folheava as histórias em quadrinhos que ele sempre lia, beliscava as uvas que sobraram e ouviu o telefone tocar, foi atender, e novamente, nada.
Pensava '' será brincadeira ? '', porque ninguém costumava ligar ou freqüentar sua casa, e se um aperto na campainha e algumas ligações foram feitas em um só dia, importância ou trote.
Olhou-se no espelho, se perguntava o que Fernando via ali. Não tinha físico de modelo, e nem uma inteligência que chamasse atenção, dinheiro, ou qualquer outra coisa que mulheres acreditam que encanta seres humanos do sexo masculino.
- Valentina.
- Sim ?
- Pode vir aqui ?
Ela foi, abriu a porta do banheiro e viu Fernando, parado em sua frente, a água escorria pelos cabelos castanho claro, e tinha um toque frio. Valentina sabia, pois ele a puxou, e o choque térmico entre ambos fez com que os olhos claros de Val, ligassem. Ela a beijava, com sua boca fria e molhada, a tocava, como se conhecesse cada parte daquilo que explorava pela primeira vez, conduziu aquele corpo feminino para dentro do chuveiro, onde os cachos compridos mais uma vez caíram pela pele, só que dessas vez, misturando-se, e ela disse somente '' mas já tomei banho ... ''
Mais tarde, o telefone tocou mais uma vez, tocou, berrou, mas ninguém foi atender. A dona da casa estava na cama, enrolada pelo íntimo de um conhecido que soube colher a cana. 
  









11 de dezembro de 2010

Ele abre o armário onde ficam os vinhos, e não oferece sequer um gole.

Na casa de Joana é que eu e Ane nos metíamos aos sábados. Lá, todas nos tecíamos palavras e concluíamos cada pensamento sem dar-nos conta do tempo. Falávamos de coisas cotidianas naquela mais uma tarde de sábado, enquanto fazíamos a unha, sentadas eu e Joana no sofá, Ane estava no chão, contando mais uma de suas histórias que sempre nos entretia.

- ... foi então, queridas, que peguei o safado na minha cama com outro homem!
- Qual safado ? - eu pergunto, um tanto dispersa.
- Ah, Francis! Preste atenção! Era o Fabrício, alto, magrinho e fumante que conheci no mês passado.
- É que são tantos safados de quem sempre você fala, que é fácil nos confundirmos- diz Joana, que até então estava quieta.
- De fato são- afirmou Ane - não quero me apegar a nenhum mesmo, pensar assim não me faz uma prostituta de esquina, faz ?
- Hahaha, provavelmente não.
- Enfim, até gostava dele, mas... Já suspeitava que comíamos da mesma fruta.
- Bom- eu digo- E o que você fez quando pegou os dois ?
- Minha vontade foi de jogar água quente no pinto de ambos, mas fechei a porta, esperei que saíssem, sem dizer uma palavra. Quando de noite, mandei um torpedo dizendo '' acabou ''. Não vi outras opções do que fazer.

Naquele momento Joana passava uma linda cor escarlate em suas unhas dos pés, que combinavam com sua pele branca e lisa, faziam par também com seu cabelo ruivo. Ane já era o oposto de nós duas, possuía um olhar vivo e atento, cabelo curtos e loiros, bem claros, que refletiam o sol de meio dia quando saíamos juntas. Era alta e proprietária de um lindos par de seios e pernas.

- Francis, você não enjoa de blues ? - Perguntou-me Ane.
- Fala do cabelo ou música ?
- Seu cabelo, é claro.
- Não.

Eu tinha cabelos azuis, que naquela tarde, pareciam mais coloridos que antes, quase não se percebia que precisavam de outra mão de tinta. Deveria ser a iluminação.

- Não enjoaria de meu cabelo assim tão fácil, Ane.
- Sei. Porque está tão distraída hoje ? Por acaso a noite foi boa ontem, e esqueceu de contar para suas duas únicas companheiras que conhece ?
- Porque pra você as coisas sempre tem que ter homem no meio ?
- Não, Francis querida, eu não coloquei o sexo masculino uma vez sequer nessa minha pergunta.
- Anh ... Desculpe, Ane, só não dormi bem.
- Entendo querida, mas o que me resta entender ainda mais nessa sala por hoje, é o fato de nossa amada Joana, nossa falante Joana, estar tão quieta e reservada. Vamos, Jô, fale da última trepada que deu esta semana! Haha, dessa vez se trata de homem, e eu assumo.
- Ah, Ane, você consegue ser menos... Você ? hahaha - digo eu, por saber que Ane é Ane.
- Diga, Joana, queremos eu e Francis saber tal quietude.
- Não é nada, sabe ... São só sonhos que volta e meia retornam para me assombrar.
- Aquela macumbeira que recomendei não funcionou, querida ? hahahaha
- Por favor, Ane, quieta - novamente digo eu.
- Tudo bem. Então ... Joana, o que terá sido dessa vez ? Posso fazer brincadeiras, esse é meu jeito, mas meu bem, seus sonhos me preocupam.
- Sério ? Porque ?
- Deveria não me perguntar porquê, gostaria muito que você pudesse ter noites de sono em paz, afinal, em seu rosto, posso notar e dizer que não se conta a dedo as noites em que não dormiu. Amor, conte- nos, o que se trata dessa vez ? Não venha com holocaustos, e pessoas morrendo desordenadamente, se não lhe digo para procurar uma clínica, como fiz da última vez.
- Ah, Ane e Francis, receio que dessa vez, não deverá ter sido sonho.
- Então alucinações ? - pergunto.
- Tão pouco, ou com certeza. O diabo em minha frente, quente e pronto.
- Ora, então será um delicioso sonho! Nada de ruim- diz Ane - Certa vez sonhei com tal senhor, era loiro e possuía um lindo par de olhos vermelhos, que clamavam por mim, deu uma chicotada e me levou para outro mundo, se é que me entendem.
- Não, querida, dessa vez foi diferente, quem me dera que fosse como o seu. Era ele, em carne, osso e chamas, em minha cozinha. Acordei, digo, levantei pela madrugada, para apanhar um copo de água, como normalmente o faço, e quando notei, ele estava lá, ao lado da geladeira, com o rabo pontudo balançando para lá e para cá, possuía chifres cerrados, cabelo sedoso e grande, amarrado completamente para trás, um cavanhaque negro também rodeava sua face. Era horrível a forma como me olhava! Encarava toda a parte que meu corpo possui, e nada fazia, apenas mirava.
- Certo, digamos que talvez seja verdade, o que passou a diante ?
- Clamou por meu nome, perguntou se portava vinho em meu armário, e sem permissão, abriu uma das muitas garrafas existentes e colocou em um copo, sem me servir, somente para si. Inerte em sua frente, eu não sabia o que fazer, não era sonho, tinha certeza disso, era minha cozinha, podia sentir o chão gelado nos meus pés, e escutava o som que a respiração dele, do Demônio. Ele parou e caminhou até mim, chegou perto e começou a falar. '' Você não deveria dar ouvidos a tudo o que falam. Nem todas as verdade são absolutas, e eu não sou de todo mal. É engraçado esse respaldo que você humanos criam, de certo ou errado, de sempre ter uma penitencia para algo, e eu estar envolvido nessa novela. Digo, sou só um alguém que cumpre trabalhos, pequena JôAriel ? ou Raphael ? Porque Lúcifer ? Só porque caí do céu, como vocês mesmos dizem ? Ou simplesmente não me deram e criaram todos os artifícios humanos que vocês tem, para me fazer inferior aos  outros e ainda superior a vocês ? Essa noite é tudo o que vim falar para você, pequena Joana, principalmente para você, que todos os dias reza para que as tentações do Diabo fiquem por longe de sua alma. Que mundano, senhorita, que mundano, digo em sua frente agora que não, não haveria de querer. Boa noite, e beba esse resto de vinho. '' Pegou o pão e terminou falando '' Aqui, o pão que o Diabo amassou. ''
E foi-se.

Ouve um silêncio na sala, não sabíamos se riamos ou sinceramente ficávamos preocupadas com a sanidade de Jô.

- Err... Querida ? - conseguiu falar Ane.
- Sim ?
- E você bebeu o vinho que ele deixou ?
- Hahahahahahahahahahahahahahahahahaha, puta que pariu - Não me segurei e me pus a rir.
- Francis! Não, não bebi, somente... Coloquei um pouco mais.
- Quer dizer - começou Ane - que alguém como Joana Green reza para tentações longínquas de sua alma ?
- É ... Sim, Ane, algumas vezes por noites, sim.

O tempo passava, enquanto tentávamos entender rindo, cada situação que Joana nos colocava, para tentar nos convencer que tentações de alma mereciam orações, e soluções para a insônia e delírios de Jô.
Mais tarde, andando para casa, quando fazia um pouco de calor e as ruas estavam um tanto esfumaçadas, pensei naquilo tudo, se Joana não tinha delirado e sim, realmente conversado com Ele. E que talvez, a diferença entre o sonho de Ane e o de Joana, com a mesma entidade, tenha sido o que cada uma deseja, atiçando de formas diferentes, uma mesma criatura.