28 de setembro de 2010

Caí no conto

Eu olhei, bem no fundo daquelas pupilas negras, sem tremer
eu deixei, daquela mania de sorrir à toa para cada vez que a respiração mudasse de ritmo naquele corpo desconhecido de alguém que eu conheço.
Eu fingi que não estava fingindo
Mas no fundo, ainda sou eu.

19 de setembro de 2010

Faltam 6 para a meia noite

- Adoro chuvas, mas são um cenário de certa forma clichê, pena que é nelas que quase tudo acontece, eu não posso evitar -

O vento úmido corre pelo meu rosto, caindo de quando em quando finas gotinhas de chuva fria. Ele vem da janela aberta que fica ao lado da minha cadeira no ônibus. Quando ando de ônibus me sinto dopada, porque o movimento me enjoa, mas é aquele momento que as pessoas enfim me deixam e eu posso pensar, pensar talvez no quanto eu sou pequena e insignificante, o que geralmente me assusta.
Em uma parada ou outra, uma certa quantidade de gente ia descendo, e ninguém mais subia, era exatamente aquela quantidade de pessoas de rostos memorizáveis. A chuva aumentava e eu escutava o barulho das janelinhas se fechando, uma a uma. Eu não ia fechar a minha, porque água purifica e vento leva para longe, uma lógica que na prática e naquele momento não fazia tanto sentido assim.
O ônibus ia devagar, talvez o motorista tivesse medo de bater no meio de tanta água, eu estava quase dormindo e minha cara indicava que eu carregava todo o peso do mundo, era exatamente isso.
Mais uma parada, alguém finalmente subia, pena que era alguém que te faz acordar de noite, suando, desesperado para que a manhã clara comece logo. Uma senhora mal vestida para certos padrões impostos, a cara ressecada pela força do sol, um rosto mefistofélico, seu corpo parecia castigado pela maldade humana, haviam feridas saradas e abertas espalhadas por si, o cabelo parecia liso e sedoso se algum pente passasse pela cabeça, eram grisalhos e longos, acostumados a serem presos mas que hoje respiravam liberdade. Ensopada da cabeça aos pés, diga-se de passagem.
Entregando algumas moedas ao cobrador, passou pela roleta e de todas os lugares vazios que poderia ocupar, veio ao meu lado de acomodar.

- Boa noite- ela disse.
- Olá, boa noite- eu lhe respondi.

Seu hálito era cachaça pura.

- O tempo está ruim lá fora- ela prosseguio- já peguei muitas tempestades assim, e até hoje o que mais me assusta são os trovões com relâmpagos, elas parecem que vão nos explodir de dentro para fora.
Ela sorriu.
- Sim.
- Os cientistas, minha filha, dizem que se as chuvas vem vindo com mais intensidade e o sol nasce cada vez mais para nos punir, a verdade é que isso tudo é uma bomba relógio, que em determinada hora explode o que tinha que explodir e recomeça, fazendo uma outra '' humanidade ''que acredita em um progresso.

Eu olhava atenta e desconsertada, com certo pânico, mas presa. Senti uma aceleração no ônibus, e a chuva cada vez mais pesada. A senhora ria entre um intervalo de falas, mas logo retornava.

- Você acredita em deus, minha filha ?
-Acho que sim, talvez, é difícil, não sei.
- Eu não.

Isso me surpreende, de certa forma, me surpreende.

- Eu sou deus- ela me diz. Você é deus e todos nós somos.
- Você não acredita em você ?
-  Possivelmente não.

Freiando bruscamente o ônibus, o motorista rapidamente acelerou, acelerou tanto que o vento que corria se transformava em um tornado devastador. As luzes começaram a piscar, enlouquecidas e eu não acreditava naquilo, não é o tipo de coisa que acontece, minha voz sumiu para que eu não pudesse gritar, não sabia mais onde estava nem porquê.
Me olhando fixamente e quase que subindo em cima de mim, a senhora aumentava o timbre de sua voz e falava:

- E como isso é possível ?! Como isso é possível ?! Você deve se perguntar porque deus se matou e se espalhou em cada um de nós, sabendo que o caos formado de cada pequena quantidade de poder iria fazer a morte, a gulosa e incansável morte! Acredite! Acredite, filha da puta, no que está óbvio!

Minhas pernas não se mexiam, meu corpo não respondia e meu ar sumia. Acho que desmaiei, ou morri, não sei.
Quando acordei, as luzes ali estavam e a chuva tinha diminuído, minha blusa estava molhada, não da água que vinha da janela, mas do suor frio. Olhei para a janela e vi que era hora de descer.
Levantei com forças que não sabia de onde vinham e quando andei pelo corredor, dei de cara com ela, ali sentada, com aparência idosa e cansada, pálpebras quase cerradas. Puxei rapidamente o sinal para descer, e desci.
Desci enquanto a boca daquela indigente se movia formando um sorriso, um puta de um sorriso que eu nunca vou esquecer.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           

Contarei, de fato, o que de fato aconteceu.

Como uma tarde comum, eu estava sem nada para fazer. Percebi que Carolina já cochilava no meio de tantas histórias e observações que eu fazia.

Resolvi levantar e fazer um café, mas no caminho achei uma pequena caixa na qual ela guardava coisas antigas e secretas.

Achando um apito preto de listras verdes, gritei de onde estava "Carooliiina, essas coisas aqui ainda pressstam ?!" Ela gritou alguma coisa de volta, mas eu não consegui identificar o que foi.

Carolina então começou a olhar para as coisas escritas na parede (*). Sem avisar, uma ovelha (*) se aproximou das palavras e começou a falar "quem somos? de onde viemos? para onde vamos? qual o sentido da vida?". A ovelha estava tão concentrada em suas passagens filosóficas que nem percebeu a terrível aproximação de uma quadrilha de palhaços.
Antes que Carolina pudesse alertar a ovelha do perigo, os palhaços foram detidos em uma teia criada por um sujeito em um traje vermelho e azul.

Na parede ao lado, diversas bandas se aproximavam para que o parecia um festival, mas antes que pudessem começar a tocar, todos desapareceram, instantes antes de eu voltar ao quarto.

Foi o que a Carolina disse, enquanto bebia o café.

Nota 1 (*)- No meu quarto, há palavras escritas nas paredes e imagens coladas.
Nota 2 (*)- A ovelha filósofa é um personagem que eu (Carolina) inventei.

Texto escrito por Alan Mussoi.

18 de setembro de 2010

Continuous Blues

Podia ver meu reflexo em seus óculos de lentes grandes, sua boca entre aberta coçava para dizer meu nome que desconhecía, a temperatura do seu corpo que aumentava a cada minuto, eu podia sentir, claro que podia.
Ela estava sentada dentro de uma cafeteria de paredes de vidro, ao lado de uma enorme foto do Elvis Costello. Comecei a andar em sua direção, caminhando nas calçadas regulares situadas num bairro comercial que fedia a industria.
- Um carro quase me atropela enquanto vinha na sua direção, amor.
- É verdade ? Que pena...
- Mas estou bem- dou um risinho.
- Que pena que não passou por cima de você.
- Ah- eu calo minha boca por um tempo- Já era previsível que me respondesse isso, fez a mesma coisa semana passada.
- Fiz ?
- Quando eu disse que uma bicicleta quase me mata passando de raspão pela minha cabeça, quando tropecei na descida da rua.
- Peço perdão.
- Aceito o perdão.
- Perdão por ser sincera.
- E pelo o que mais eu perdoaria?
- Não sei, é você quem está perdoando.
- Porque você tem que ser assim ?! Toda semana você senta a bunda nessa cadeira, toma uma merda de um café e aparenta ser exatamente o que não é, uma puta de uma mulher legal.
- Eu sou.
- Mas não parece.
- Mas eu sou.

Caindo nesse truque meu, ela fica me olhando como se quisesse pedir desculpa, mas eu acho que na verdade é um olhar de quem quer me matar.
- Ok- ela finalmente responde.
- Ok ?
- Se eu, de alguma forma possivelmente impossível aceitasse naturalmente que você sentasse e conversasse de verdade comigo, o que iria fazer ?
- Bom, eu ... - começo a gaguejar, o que é meio comum quando não se tem noção do que dizer.
- Então ?
- Acho que perguntaria seu nome primeiramente.
- Acho que eu responderia.
- Qual seu nome ?
- Judy.
- Como Judy Garland ou Judy is a punk ?
- Exatamente, e o seu ?
- James.
- Como Morrison ?
- Pode ser. Eu toco guitarra.
- É mesmo ?
- Sim- eu digo, porque um dia me disseram que esteja onde estiver, tocar um instrumento atrai mulher. Grande merda tocar alguma coisa.
- Grande merda tocar alguma coisa- ela me diz.
- É- eu engulo essa resposta.
- Era só isso que tinha pra dizer ?
- Ainda não tenho um manual de '' como dizer coisas que elas querem ouvir ''
- Devia ser uma edição limitada.

Ela fica nesse jogo comigo, não diz o que quer, mesmo eu sabendo que o fogo por de baixo de sua saia estava se acendendo, eu disse que podia sentir.

- Você faz por dinheiro ou por prazer ?
- Depende do momento, meu amor- ela me diz.
- Agora seria por ... ?
- Isso é você quem tem que me convencer.
- Ah, você quer andar um pouco ?
- Vamos, pode ser, só não quero demorar muito.

Você nunca sai andando à toa, é o que eu sempre pensei, inconscientemente você sabe onde quer chegar.
Nós andávamos, fingindo que não sabíamos o nosso devido lugar naquela hora, só para prolongar algo que mais cedo ou mais tarde aconteceria.
Não estava escuro nem claro, mas as luzes de alguns postes já fervilhavam energia. Estava quente, mas o vento que corria excitando a minha pele, me fazia mudar algumas vezes de opinião sobre o clima. Chegando numa ruela que cheirava a podre, finalmente eu senti que a diversão ia começar.

- O que é esse lugar velho que a gente parou em frente ?
- É só um lugar- eu expliquei.

Ela entra sem fazer mais perguntas, sabia que se perguntasse, a resposta demoraria e seu corpo já queria se despir e brincar com meu brinquedo. Subimos as escadas, abrimos a porta de um quarto e ela malmente esperou que minha calça estivesse fora das pernas.
Enquanto ela ia e vinha em cima de mim, ela cantava entre um gritinho e outro '' this is the end, my only friend, the end (...) ''. Eu achei isso doentio.
O quarto não tinha luz, só a iluminação de um poste que tinha ali perto da janela. Eu podia ver seu rosto, podia vê-la mordendo o lábio inferior e seus olhos revirando. Só que eu não sentia nada, não era o que eu tinha imaginado.
Ao me virar para bruscamente beijar sua boca, ela tinha sumido, desaparecido.
Eu tinha consciência de que aquilo era verdade.
Saí sem roupa do quarto, correndo, mentalmente pedindo para que acordasse. As escadas me derrubaram, me fizeram cair na calçada. Corri como louco e senti gotas, do que eu acho que era chuva, penetrarem no meu corpo como se fossem agulhas. Corri por de baixo de um céu cinza e laranja, sentindo cada vez mais um forte cheiro de vômito. Eu pegava fogo de dentro para fora, estranhamente Cry baby tocava, ecoava, enquanto as formas escorriam para um buraco sem fundos.

Eu pude ver estrelas, enquanto minha matéria era esticada. E eu me ia assim como vim, nu e sem entender.
Isso durou horas, ou apenas alguns segundos, eu acho. Me senti flutuando novamente, sozinho pelo grande, pelo vasto vazio, pelo nada.
Eu sabia que era real, para mim era.