9 de março de 2011

Hades procura por Perséfone, quando lhe falta carícia no meio da noite

Todos os dados apontam que, em rumo a Calecute, a armada de Pedro Álvares Cabral sai de Lisboa, e acidentalmente descobre o Brasil, no dia de hoje.
Portugal declara oficialmente guerra à Alemanha e seus aliados, no mesmo ano morre Grigori Rasputin. 
Nasce Américo Vespúcio, nasce Iuri Gagarin.


Às 4h da manhã se ouve em uma antiga rua, o suave tocar de um violino. Essa melancólica melodia invade o silêncio, parecendo que traduz mágoas e incertezas. Tão tarde, a música desliza calmamente por entre as poucas e velhas residências. São 4h da manhã, e o desabafo musical não parece ter fim. 
Ainda se faz escuridão quebrada pela luz de um poste no local, tal luz também ilumina a fonte de criação da melodia. 
Em um canto não tão escondido de um quarto, há um homem. Seus olhos transmitem um olhar distante, fora de tudo que já foi um dia conhecido. Ele parece sonhar acordado, sonhar com memórias atingidas por algo que reluta em relembrar. De olhos marcados pelo tempo, não deixavam de ser belos, os cabelos castanhos de certa forma claros que caem pelo rosto, há muito tempo não sabiam o que era tesoura, barba por fazer e banho à tomar. Com tudo, aquela criatura encantava aos olhos com seu mistério.
Normalmente, o som do violino dançava pelas casas em dias de chuva, fazendo com que os vizinhos, com o barulho da água, não ouvissem o que o criador chamava de tormento, mas de uns anos até aqui, a 
'' tormenta ''  se tornou mais freqüente e longa.
Amanhecer a anoitecer, quase não se via a presença dele entre a pensão onde morava, um lugar estranho aos olhos de muitos. Às cinco da manhã cessou aquela admirável composição, mas se entrasse no quarto do rapaz, iria ver que o devaneio entre mundos ocultos por dentro de si, ainda continuava. A luz do poste, que antes clareava o quarto, se fez total breu, a rua, já não escura o suficiente, finalmente contentava-se com a quietude. Tudo parecida mórbido.
Debruçado na cama, ele escrevia textos que se referiam ao cotidiano, uma espécie de diário. Mais que isso. Doces palavras e tantas histórias, era uma fuga alternativa em meio de um quarto que cheirava à mofo.
Cassidy, seu nome era Cassidy, escritor e músico. Havia mais de três anos que morava ali. O lirismo se mantia intacto em Cassidy, idade mediana, por volta dos 30 mais ou menos. Algo acontecia internamente, talvez uma luta passional, que deixava sua essência mais pesada do que já era escancarada. 
Bateram 6h da manhã, e ele sonhava. Padres vestidos de vermelho, faziam fila para devorá-lo, com seus sorrisos amarelos e bocas roxas, a cruz reluzente em seus peitos, e seus paus eretos cobertos pela batina. Um deles tomou a frente e o levou para um quarto escuro, esse se parecia com Verlaine. Acordou no susto, ligeiramente foi até a geladeira da pensão, pegar um pouco de água. 
Descendo as escadas que rangiam, ele foi lentamente até a cozinha. Coçou os olhos, a barba, e acendeu a luz.
- Ai meu ... Caralho!
- Isso são modos, criança ?- Perguntou a dona da pensão, que estava sentada à mesa.
- Perdão, não quis ofender, só me assustei, pensei que não tinha ninguém esse horário.
- E não tem.
- Não ? E o que por acaso a senhora é... ?
- Ninguém, meu rapaz.
Ali em sua frente, a senhora virou pó. Cassidy acordou em sua cama, era mais um sonho. Decidiu beber água, e desceu as escadas, que não rangiam, apenas o último degrau. Antes de entrar na cozinha, perguntou se havia alguém ali, não houve resposta. Ele foi rapidamente abrir a geladeira. 
- Engraçado como não bate a luz do dia pela janela - Falou.
Colocou a água no copo, a virou para voltar ao quarto.
- Você quer procurar minha Perséfone ? - Perguntou um sério homem.
- Claro, porque não ? - Sorriu Cassidy.
- Pensei que iria resistir e levar um susto, como todos os outros mortais. Geralmente todos ficam empolgados ao verem Afrodite ou Dionísio, não eu.
- Você é um sonho, Hades.
- Não sou, Cassidy, eu matei você, isso não é sonho.
- Eu estou vivo.
- Você está vivo, perdão, mortal idiota.
- Quer conversar ? 
- Que horas são ? Tenho que achar Perséfone.
- Acho que não batem horas exatas, vamos conversar.
- Er...
-Sente-se.
Como num gesto quase que manipulado, Hades sentou. Ficou olhando para a cara de Cassidy.
- Bem - falou Cassidy - estou excitado com sua presença, o que lhe traz para perto de mim ?
- Creio que a sua ausência, o que houve ?
- Me perdi, Hades, decidi não mais voltar.
- Sabe muito bem que você não se perdeu... Apenas, não existiu para nossa realidade.
- Sei, na verdade, foi o que quis dizer. Apenas me diga, o que lhe traz aqui ?
- Perséfone, já disse, ela está um mês atrasada, sinto a falta de se corpo e sua alma, tocar sua pele macia, que me dá vida.
- Boa piada.
- Sim, eu sei.
- E porque até mim ?
- Queria saber como está, quer dizer, sinto sua falta.
- Eu nunca estive.
- Exatamente.
Faz-se silêncio na mesa, a hora é paralisada, não pode correr, Hades evita olhar nos olhos de Cassidy, que abre uma garrafa de cerveja.
- Acho que ela já voltará, digo, ela ama a sua entidade, não o deixará.
- O desejo faz com que cada tempo sem ela seja perturbador.
- Sei como é.
- Desculpe por isso, não foi nossa intenção matá-la, não diretamente, mas você estava envolvido e isso não estava certo.
- Como ela está ? Digo, Pamela ainda lembra de mim ?
- Não, ela é morta.
- Sei.Você pode ir, se quiser, não é obrigado a conversar comigo.
- Perséfone foi tomada pela dor, pelo seu destino não ser ao nosso lado, por você
 ser apenas uma peça pregada por Morfeu, que por vingança dela não ter se cedido a ele, o fez. Você é forjado, e foi dado à Orfeu por isso, uma ilusão, não podia ficar conosco. Pensamos que seria uma forma de te fazer viver.
- Entendo. Espero que encontre Perséfone.
- Feliz Aniversário, Cassidy.
- Perdi a conta dos anos. Mande um olá para Perséfone, diga que breve nos encontraremos.
- Não será tão breve.
- Tempos dependem do ponto de vista.
- Realmente, foi um prazer.
- Hades!
- Sim ?
- Sonhos podem sonhar ? 
- É diferente, rapaz, você é condenado a isso, à deus.
- Até logo.
Esfregando os olhos, Cassidy volta para seu quarto. Já é claro, então ele fecha as cortinas, para dormir melhor. Ao fechar os olhos, lembra de todos os dias 9 de março que já passou, sorri, e lembra que essa também foi o dia que conheceu Pamela. 
- Maldito Morfeu.
Ele sonha que está sendo afogado no mar índico. 

5 de março de 2011

Lost in translation

E depois de ter voltado para casa, pois passara algum tempo no hospital, ela preferia ter a companhia da sensibilidade, do que de Dostoiévski.

2 de março de 2011

Sublime canção

Não era muito tarde quando cheguei em casa. Me sentia diferente, na verdade, me senti diferente o dia todo, desde a hora em que acordei e me senti viva e parte de uma experiência sem passado que a memória deixe alcançar. 
...
É difícil ver nas suas razões, concordância com novas outras razões. É o primeiro impacto diante de Krishna e Arjuna.  
...
Amarrei meu cabelo de uma forma diferente, troquei a calça jeans que tanto me enjoa, e fui a quintal sujo ver o céu. Entendi porque o papagaio sobe no telhado e fica imóvel pegando o vento que sopra invadindo suas penas verdes. Olhei para os coqueiros altos, as folhas que se mexiam, o céu azul-cinzento, e me senti ainda mais sensível. 
Lembrei que aquela hora era a hora em que minha avó sempre faz o café, que meu tio tanto gosta, e eu também. Mas ao sacudir a garrafa térmica, não tinha nada. Me conformei que não tomaria meu café diário, mas minha avó se levantou e foi fazer, sem eu pedir, outra vez o líquido puro e negro que havia acabado. Conversei com ela na cozinha, falei de coisas normais. A coisa que mais me encanta, apesar de humana demais muita das vezes, é a inocência com que minha avó vê certas coisas. Não sei se inocência é a definição certa. Não sei definir nada nesse momento.
Peguei a maior xícara que enxerguei, coloquei meu café quente dentro e voltei ao quintal. Precisava de céu.
Lembrei do livro que lia, fui ao quarto, peguei e voltei, só que começava a ficar escuro, o infinito ficava belo, até a luz acabar. Liguei a lâmpada, sentei na cadeira e li. 
Não era frio, nem quente, só era a sensação de dentro que se manifestava. Me agoniava, mas não desconcentrava. 
Não me sentia completa, nem sei porque me sentiria, já que nunca me sinto. Me senti carente de coisas que nem sei se existem, senti vontade de atravessar portas, e ao mesmo tempo, me congelar, me fazer parar de pensar e sentir, mas também senti vontade de agir. Não me sentia real, apenas uma imagem que tornava a repetir ou era inédita em algum lugar, em outras portas e janelas. 
Uma barata enorme começava a se aproximar de mim, não mato baratas, peço mentalmente que elas sumam, até que começo a gritar e meu pai de saco cheio as acerta. Dessa vez meu pai não estava, ele habitava algum outro que necessitava estar, longe de mim, que necessitava estar ali. Peguei a sandália e matei aquele enorme pequeno ser. Enquanto cometia esse assassinato de outras leis, o papagaio me olhava de canto, comendo seu pão. Aquilo me incomodou, e lhe dei uma explicação, começando um bate papo e entendendo que estava sendo compreendida. Parei e disse para mim mesma '' ele é só uma ave '' e voltei a ler. 
De repente me senti exposta e sozinha demais, fechei o livro que me exigia atenção e voltei para meu quarto. 
Ainda me sinto diferente, diferente demais para ver pessoas.