6 de fevereiro de 2011

Baratas zumbis não sobreviveriam a bombas atômicas

Escrito para Alexandre Felipe, que me ajudou com o título. 

Permanecíamos quietos em seu apartamento, um amigo e eu.
Ele olhava o teto, e eu, o resto de café que sobrava no fim da xícara branca na qual há algumas horas ele tinha me servido, o zumbido do silêncio incomodava, enquanto a tarde botava fim no dia, e era substituída calmamente pela noite.
- Posso colocar Beatles ? - eu perguntei.
- Não, não gosto de Beatles.
- E que tal um blues da Janis ?
- Dela eu gosto, pode ser.
A primeira faixa era Mover over. Ele estava jogado no sofá manchado, sendo aliciado pela sua Memphis vermelha que permanecia imóvel em cima o corpo dele, mas ambos sabíamos que era puro teatro, ela queria mesmo o corpo dele.
- Já tá anoitecendo, porque não liga a luz ? - Perguntei, até como uma forma de puxar assunto.
- Não paguei a conta, não tem luz.
- Tem vela ?
- Sei lá.
Andei pelo apartamento, procurando uma vela, porque a escuridão já se tornava enjoativa. Acabei me entretendo com umas formigas que faziam caminho do armário até o fogão dele. Achei a vela.
- Ei, porque tem uma vela preta em cima da tua geladeira ?
- Ah, me deram ali na encruzilhada, usa aí.
- Tá.
Acendi a vela, e ela soltava um cheiro bom. Me joguei no chão e fiquei igualmente olhando para o teto, querendo ver o que tinha de interessante nisso.
- Ei - ele disse - baratas zumbis sobrevivem a bombas atômicas ?
Levantei do chão e andei de um lado ao outro. Respondi:
- É uma boa questão, muito boa. De onde saiu ?
- Uma barata me perguntou.
- Sério, quando ?
- Teve uma noite que me chamaram pra tocar num barzinho, com as paredes sujas e que parecia uma estufa de tanta fumaça. Quando terminei de tocar, sentei no balcão pra não sair com sede.
- E ?
- E uma barata chegou andando com um cigarrinho na mão.
- E o que ela disse ?!
- Olha, foi mais ou menos assim:
'' - Robert Johnson até que teria orgulho desse bluesinho que tu tocou, até que. ''
- E ? - perguntei.
- Daí eu perguntei o que ela fazia ali.
 '' - Vim ver se algum verme feito você tem alguma coisa a acrescentar na minha vida. ''
- Olhei pra ela com desprezo, claro, um tipinho desprezível de barata.
- Sei, mas afinal, o que ela pretendia ?
- Olha, depois de ajeitar o chapéu panamá, que dava um charme, ela me deu uma piscadela.
'' - Veja, garoto, não quero parecer uma barata de esgoto, puramente mal educada. Veja pelo meu lado, há muito não encontro inspiração pra nada. Sou essencialmente blues, e bem, garotos como você me fazem lembrar do tempo em que música valia de algo. Não se ache por isso, seu lixo. ''
A chama da vela preta fazia uma espécie de dança do ventre, o que me fez desviar a atenção por alguns instantes.
- Mas enfim - me voltei - ela continuou ?
- Continuou. Falou sobre música e baratas francesas que cheiram a talco.
- E onde entram os zumbis ?
- Ah, sim. Ela me disse '' O espírito jovem de hoje vale a mesma coisa que merda, bosta, cocô. Outro dia vi baratas jovens fantasiadas de vampiras e zumbis e pensei ' idiotas, não vêem que baratas zumbis nunca sobreviveriam a uma bomba nuclear ?! Apelam tanto ao diferente e se tornam patéticas. ''
- PUTA MERDA! - comecei a rir e meu amigo também, baratas tem um ótimo senso, havia me esquecido- E depois ?
- Ela disse que ia para casa dela, pois se sentia cansada, e foi. Disse algo sobre fazer amor consigo mesmo, pensando na Billie Holiday, uma coisa de mal gosto diga-se de passagem. Mas até que sincera.
- Deve ter ido fazer blues.
- Tomara.
- Queria ser a Billie Holiday.
- Pra barata se usar pensando em ti ?!
- Não, porque ela é boa. Não a barata, a Billie.
- É.
- É.